A era dos super-heróis no cinema estava carente de seu símbolo feminino máximo, a Mulher-Maravilha. A espera, porém, valeu a pena e o filme solo da amazona “chegou chegando”: com uma forte carga feminista e disposição para mostrar que as mulheres não ficam atrás dos homens em lugar nenhum, a princesa-guerreira toma a frente no campo de batalha e destrói seus adversários sem piedade, assim como derruba o estereótipo da donzela em perigo à espera de seu salvador. Pelo menos é isso que diz a propaganda do filme. A questão é: será que a propaganda vende o filme de forma honesta?

No filme, a princesa Diana realmente se impõe no campo de batalha, enfrenta o conluio masculino nas reuniões de cúpula e debocha do discurso machista que tenta enquadrá-la em um padrão de época. Até aqui, tudo encaixadinho na proposta descrita acima. Temos, assim, um filme subversivo de verdade, que inverte a lógica da dominação masculina tão presente na indústria cinematográfica de massa? Não, não temos. O filme da Mulher-Maravilha é apenas mais um que usa o discurso feminista como acessório para impor às mulheres o papel de coadjuvante em sua própria história.

No decorrer do filme, ficamos sabendo que a princesa Diana não é somente uma amazona. Ela, na verdade, foi criada por Zeus, o pai de todos os deuses, para enfrentar e derrotar o deus Ares, que havia se rebelado, derrotando os demais deuses e pretendendo acabar com o mundo dos homens. Para evitar isso, Zeus, após se sacrificar ao conter Ares em sua ira, deu vida a Diana e a deixou com Hipólita, rainha das amazonas, na Ilha de Temíscira, para que a princesa pudesse enfrentar Ares no momento em que ele pusesse em prática seu plano de destruir a humanidade. Sim, é isso mesmo: Zeus, um deus masculino, deixou sua criação aos cuidados de mulheres para que elas cumprissem o que ele determinou, como milhares de mulheres são pressionadas a fazer todos os dias. Como se isso fosse pouco, nossa heroína é retratada, explicitamente, como um objeto: a Mulher-Maravilha é nada mais que uma arma criada para derrotar Ares. E no final é isso mesmo que acontece, sem nenhuma subversão ao padrão estabelecido pela indústria.

Mas deixemos um pouco os deuses e partamos para a relação da princesa Diana com a humanidade. Quem faz a ponte entre a Ilha de Temíscira e a civilização é Steve Trevor, capitão do exército e espião na primeira guerra mundial do lado dos Aliados, que se torna o interesse amoroso de Diana. Após alguns diálogos mostrando a incompreensão de Diana em relação ao mundo machista em que ela se insere, eles partem para a guerra. Como uma arma mortal, Diana, obviamente, derrota a todos no campo de batalha. Seu único embate de igual para igual é com o próprio Ares, afinal, eles são deuses, nenhum humano é capaz enfrentá-los. No fim da luta, como era de se esperar, Diana derrota Ares. No entanto, a guerra só chega realmente ao fim com um gesto de sacrifício de Steve Trevor; ou seja, o principal momento de doação e abnegação, enfim, de heroísmo, o qual terminou a guerra e salvou milhões de vidas, é dado por Trevor, não pela Mulher-Maravilha.

Essa curta análise não abrange todos os aspectos do filme, mas já me deixa com sérias dúvidas quanto ao adjetivo feminista dado ao filme em si, mesmo sendo uma história contada por uma mulher, a diretora Patty Jenkins, e protagonizado por uma mulher, a ex-militar Gal Gadot. Mas deixemos o enredo do filme um pouco de lado e analisemos seus efeitos simbólicos com o público. Aqui, as coisas se tornam um pouco mais complexas, porque o simples fato de uma mulher liderar um grupo de batalha é, sim, uma mudança de paradigma, que inclusive é bastante perceptível em outras obras recentes de sucesso na indústria cinematográfica hollywoodiana.

A franquia Jogos Vorazes, por exemplo, não apenas não é feminista como é machista, pois a protagonista Katniss Everdeen, durante quatro filmes, é estimulada a assumir o comando no processo revolucionário, mas rejeita esse caminho aparentemente natural endereçado a ela. Quando uma outra mulher, sem ter medo de sujar as mãos, se dispõe a liderar a mudança vindoura, a protagonista simplesmente a mata, recolhendo-se, ao final, em um lugar pacífico para cuidar do marido e de seus filhos. Mas, como já foi dito, a história não é relevante nessa discussão de gênero, porque a jovem Katniss tem o poder de, com um arco-e-flecha, derrotar os vilões (majoritariamente homens) a rodo. E, no fim das contas, é isso que importa: o poder da mulher. No feminismo hollywoodiano de hoje, é esse símbolo da mulher forte, empoderada, que dita a transformação social, mostrando que as mulheres são suficientemente fortes para enfrentar a opressão dos homens na sociedade.

Analisando essa leva de filmes com protagonistas mulheres a partir da reação do público, não há por que negar a influência dessa visão da mulher empoderada dos filmes recentes de Hollywood na dinâmica social. Assim como a princesa Diana, que quando criança se espelhava nas guerreiras amazonas mais velhas para aprender a lutar, muitas meninas veem na Mulher-Maravilha uma possibilidade de ser e agir muito diferente daquele que se apresentava até pouco tempo nos cinemas.

No entanto, mesmo reconhecendo os efeitos dessa perspectiva junto ao público, sobretudo o público feminino, há que se questionar os caminhos tomados com essa aclamada escolha da indústria cinematográfica: será o empoderamento das personagens femininas o meio de superação das mulheres dentro do horizonte machista em que estamos inseridos? Partindo de uma perspectiva naturalmente distanciada do tema (não sou mulher), o que traz vantagens e desvantagens para a análise, ainda vejo nesses filmes uma perspectiva preponderantemente conservadora, longe de qualquer ideal emancipatório, e por isso não há como descrevê-los como filmes feministas, inclusive em seus efeitos simbólicos.

Meu problema com essa leva de filmes recentes está justamente no que aparenta ser seu grande trunfo: o discurso empoderador.  Acredito que essa forma de abordar a questão de gênero parte de erro de leitura em relação ao machismo, e esse erro nos leva a uma resposta equivocada do problema. O que eu penso ser um erro de leitura diz respeito à ideia de que os homens veem as mulheres como naturalmente mais fracas que eles. Apesar de ser um discurso muito vezes literal de homens machistas, não é sobre esse fundamento que se estrutura a lógica machista, e a crença de que romper com esse discurso nos levará a um ambiente de igualdade de gênero nos trará mais problemas que soluções.

A lógica machista não se constrói por meio de uma diferenciação quantitativa (mais ou menos forte, poderoso) entre homens e mulheres, mas de forma qualitativa; uma distinção que tem mais a ver com definição de papéis sociais do que com a capacidade de executar alguma tarefa. Utilizando um exemplo esdrúxulo, lembro um discurso de Michel Temer, quando, em um pronunciamento presidencial, tentou enobrecer a importância feminina na vida dos brasileiros ao dizer que sem sua esposa Marcela ele não seria capaz de compreender a dinâmica da economia, pois ela é quem faz a feira de casa e cuida dos filhos. Uma fala asquerosa e, do ponto de vista político e econômico, mentirosa, claro, mas há um fundo de verdade em sua afirmação: ele realmente percebe — ou, no mínimo, reflete a percepção de muitos brasileiros — a importância de sua esposa (e das mulheres em geral) ao falar isso. Temos, nesse caso, não a associação de Marcela Temer a alguém incapaz, mas, pelo contrário, o fortalecimento da identificação dela com um papel social específico, reafirmando uma condição previamente estabelecida.

Então, por que o machismo é sempre associado à ideia de se retratar as mulheres como o sexo frágil? O motivo dessa confusão é a inversão da dinâmica causa-efeito: a suposta fragilidade das mulheres não é a causa, e sim a consequência do machismo. Numa sociedade que se estrutura de modo a determinar previamente o lugar de homens e mulheres, o ato de tratá-las como seres inferiores surge apenas quando se tenta romper com essa ordem opressiva, sendo muito mais uma tática de defesa conservadora contra as mudanças que o princípio estruturador da lógica machista.

Agora, porém, há uma aparente contradição no texto que precisa ser dirimida: dentro dessa análise, não seriam os filmes dessa nova safra hollywoodiana, como o da Mulher-Maravilha, exemplos claros de luta feminista, uma vez que essas heroínas estão tomando o papel historicamente exercido pelos homens na sociedade? Para enfrentar essa questão, preciso voltar ao que apontei anteriormente: o erro na leitura nos leva a respostas equivocadas.

No imaginário estabelecido pelas heroínas contemporâneas, as mulheres se empoderam para tomar o lugar dos homens na sociedade. Essa mudança no jogo social realmente muda dos papéis sociais historicamente estabelecidos, mas será esse o propósito de uma luta emancipatória? Acredito que não, uma vez que, em se tratando de jogo, “a casa” sempre ganha. Ou seja: por mais que alteremos as peças de lugar, o tabuleiro permanece intacto, e o jogo continua; um jogo em que há vencedores e vencidos, e o que está em disputa são recursos materiais e simbólicos de existência: enfim, dignidade. Tentarei explicar.

No paradigma social contemporâneo, “a casa” — o sistema político e econômico capitalista — articula uma ideologia que nos impele a tomar o nosso lugar na sociedade. Se em outras épocas havia noções muito mais rígidas de família, conformação de gênero e sexualidade, hoje somos levados a crer que devemos ser únicos e fazer coisas únicas; empreender, mudar, transformar. A imagem que apresentamos de nós mesmos para o mundo está acima de tudo. Dessa forma, nada mais natural que adentrarmos o universo antes restrito a determinados grupos e roubar-lhes o protagonismo. Contudo, emancipação não é isso; emancipação é apostar tudo e fazer o impossível: quebrar a banca. Romper a lógica capitalista e superar essa dinâmica vencedores (o 1%)) / vencidos (os 99%).  Então, como “quebrar a banca”? Restringindo a questão à temática do texto: como fazer um filme feminista emancipatório? Se empoderamento feminino não é a resposta correta, o que deve ser feito?

No caso dos filmes de super-herói, seria necessário quebrar a lógica narrativa. Se a protagonista for uma mulher, como a Mulher-Maravilha, deve-se mostrar que ela não é tão poderosa como se pensa (ou se quer), que ela erra e por vezes também é fraca. Se o Homem de Ferro, o Superman, o Batman e tantos outros heróis homens fazem besteiras às dúzias, por que a Mulher-Maravilha também não pode cometê-las? Devemos, assim, fazer o caminho inverso: retratar suas fraquezas de forma honesta, compreendendo-a como um sujeito que erra e acerta, não o objeto de satisfação de um grupo sedento por poder. Enfim, em vez de dar poder, deve-se quebrar a lógica do poder. Pelo que conheço, não há exemplos desse tipo no universo dos super-heróis, mas dois filmes recentes, de relativo sucesso, podem nos mostrar bem a diferença de perspectiva entre filmes protagonizados por mulheres: Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, e Elle, de Paul Verhoeven.

Em Aquarius temos a protagonista Clara, vivida por Sônia Braga, uma mulher de classe média alta que, apesar de viver em contato com amigos e a família, mora sozinha em um apartamento que se tornou alvo de uma grande empresa imobiliária na cidade, a qual a pressiona de todas as formas para que ela venda seu apartamento, de forma que o edifício em que formou sua família seja derrubado, dando lugar a mais um arranha-céu. Porém, Clara é uma mulher forte, empoderada, que resiste não só às investidas da imobiliária, como se mostra resistente em outras frentes. Como descrito aqui, Clara é uma heroína. A pergunta, então, é: a que nossa heroína resiste? A resposta: Clara resiste a mudanças. No mundo acelerado do capitalismo contemporâneo, ela dá um basta na dinâmica avassaladora do mercado e impõe seu lugar, o seu poder. O problema é que a lógica do poder se mantém. Entre perdas aqui e ali, todos os envolvidos na vida de Clara continuam girando a roda do poder. Nesse sentido, é emblemática a cena final do filme, quando nossa heroína, junto ao sobrinho querido que fala palavrões e à advogada que nada fala, coloca, literal e ironicamente, o pau na mesa (isso é feminismo?), desafiando o jovem empresário ambicioso e o pai, que ali exercia o papel de grande chefão, a enfrentá-la. Todavia, o problema não é a cena, mas o que vem depois. Ou viria, porque o filme termina ali. Depois de Clara se impor e supostamente vencer a batalha com os capitalistas, podemos imaginar ela retornando vitoriosa ao seu apartamento, o sobrinho feliz por ter dito “umas boas verdades” aos empresários, a advogada ainda calada (e com o bolso mais cheio) e os empresários saindo daquela para outra reunião, para um novo empreendimento. Tudo como era antes, perfeitamente conservado em sua estrutura.

Em Elle, por outro lado, não há bem uma heroína, pelo menos não como estamos acostumados. Aqui, a protagonista é Michèle Leblanc, interpretada por Isabelle Huppert, empresária de um ramo de negócios dominado e consumido por homens: os jogos de vídeo-game. Já no começo do filme vemos Michèle sendo estuprada por um homem misterioso em sua própria casa. Essa violência, porém, não é seguida por um processo traumático paralisante ou por uma busca ensandecida de vingança, eventos comuns em filmes que tratam essa temática. Após o estupro, Michèle aparentemente segue a vida normalmente, inclusive relatando o fato a alguns amigos, que ficam mais angustiados com o caso do que ela mesma. No entanto, mesmo ser apresentar um desejo de vingança, Michèle passa a procurar seu estuprador. Mas, novamente, não se trata de um caso de síndrome de Estocolmo, em que a vítima se compadece pelo seu agressor e passa a deseja-lo, reação também já explorada em outras obras e, para alguns machistas raivosos, até esperada. Ao reencontrar seu agressor, no fim do filme, Michèle é novamente violentada, apesar de tentar resistir, o que demonstra que essa não era sua intenção. Então, por que ela o seguiu? Não há como saber, e esse é o ponto. Em nenhum momento podemos prever suas ações. Ela apenas fez o que quis fazer, sem ceder a nenhum mandamento de ordem moral ou social.

Esse gesto, dentro do contexto do filme, lembra a resposta do escriturário Bartleby a seus superiores quando recebia ordens, no famoso conto de Herman Melville: “preferiria não fazer”. Esse desconcertante “preferiria não fazer” movimentava e atormentava a todos no ambiente de trabalho, menos o próprio Bartleby. Em Elle, Michèle preferiu não se abalar, não se vingar ou não se apaixonar pelo estuprador, mesmo que todas as normas ou convenções sociais, feministas ou machistas, a obrigassem a tal. Ela não cedeu à imposição de agir, e com isso deu-se um processo de subjetivação radical da personagem. O mais interessante é que o estuprador termina morto pelo filho de Michèle, mas não como se este fosse um herói, porque o jovem termina em uma situação extremamente constrangedora, subordinando-se à namorada que o humilhava. Então, de certa forma, Michèle agiu como quis agir, e todos ao seu redor desmoronaram. Essa é a mensagem feminista do filme: ajam como queiram, sem se submeter à opressão dos homens nem tendo de respondê-los a qualquer custo, e o machismo ruirá por si só. A estrutura opressora é muito frágil, nós que a valorizamos demais.

Leonardo Ibraim

 

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