sonia-braga

Clara ou Sonia Braga, de início, tanto faz. Seja no filme ou fora dele ambas transformaram-se em heroína.

A primeira, pela trama “prafrentex” de Aquarius. Pois é no avesso que ela é construída. Não se autoafirma, nem precisa de tantos bordões para sê-la. Muito menos utiliza subterfúgios para promoção de alguém nesse posto. Uma indumentária típica dos ídolos? Não. Pois esborra elegância até na condição de “mutilada”. Ou seria o ser mutilado sua vestimenta? De uma forma ou de outra, uma romântica protagonista invertida. Uma protagonista de outros tempos numa realidade (pós-, ultra-, bem-,…) moderna. Uma heroína “retrô”.

A segunda, a atriz, menos. Não menos heroína, mas menos obscura. Por mais que Clara seja a outra. Posterior ao lançamento do filme, Sônia colou na boca da turma “cult”, e por esta passou a ser novamente cultuada. E se se fala menos, é porque mais se fala de Clara, sua personagem. Necessário o destaque ao pronome possessivo, pois, diz a crítica, ser o personagem, para a atriz, quase um prêmio por sua carreira. E somente alguém bem identificado ao personagem para fugir do clichê e tocar o não-dito sem precisar desenhar para o público o que se quer dizer.

Danado é que a condição de heroínas modernas não vem na dimensão de uma indagação ao fim do filme. Mas da tocante construção de Clara, que não é símbolo apenas pelo que sofre e, por fim, obtém redenção – por mais que isso também faça parte da trama. Nem somente pela coragem, bem ao estilo “dura na queda”. Posição que os filhos da personagem não teriam, mas que nela, em Clara, admiravam. Clara é bombardeada todo tempo, inclusive por fogo amigo. Mesmo assim, não abre mão do ataque. Guerreia como manda a cartilha. A situação de fogo cruzado é tanta que cansa. Estafa. E tenta trégua. Numa orgia de si pela orgia dos outros encontra uma escatológica “paz olímpica” e, enquanto os inimigos transam, ela também transa. Não somente. Subverte! Ao gozar do gozado gozo a ela endereçado.

Tem seu ápice e um fim; fecha a trama na casa do inimigo e lá devolve a granada pinada. Digo mais, o romântico invertido personagem de Clara tem local e data de nascimento: anos 80 duma boa viagem magicamente reconstituída. Enfim, se é para admirá-la ou bater palma, assim se faz. Mas, passado o êxtase, vem a questão: quem é Clara mesmo? Heroína de quem? De KMF? Ídolo “cult” que virou até sigla?

Outra pergunta ainda mais elementar é necessária: Clara deveria mesmo ser heroína de alguém? Respondo com uma afirmação lateral: entre as palmas de um tempo e as palmas do tempo, parece que o filme de KMF preferiu somente o seu tempo. É minimamente óbvio que a qualidade do filme tem um caráter de grandioso na cena nacional. Ótima bilheteria, repercussão e crítica sem se enquadrar no clichê dos filmes temáticos do fazer-vender. Até porque é um filme longo e com uma trama até certo ponto complexa se comparado às produções nacionais de grande bilheteria.

Particularmente, vejo Aquarius como um folder turístico cult de Recife. Uma carta de entrada da turma descolada a “estrangeiros” também descolados (do tipo cult). Podem dizer os primeiros: esse é o meu lugar. Um lugar recheado de sentimentos tal qual uma roda de fogo (tal qual o nome de uma comunidade recifense). Clara é sentimento de um determinado público. Clara se movimenta como ondas de Boa Viagem. Entre a beleza e o perigo, entre a paisagem e o tubarão. Entre a areia e o asfalto. Entre o passado minguado e o presente que faz minguar.

Clara é um pai falido. Como uma nota de um dinheiro antigo, de alguns Cruzeiros, que um dia tiveram seu valor mas que hoje é papel antigo, fadado ao lixo. Enfim, desmoralizado. Mas a questão ainda por ser: Clara deseja definhar e encontrar o seu fardo, o seu destino? Clara, acusando duros golpes, prefere cair com dignidade? Ou reclama a derrota botando a culpa no inimigo? A princípio, seu valor, ainda que deteriorado, machucado, apagado, ridicularizado, continua sendo valor para ela, aquilo que batalha em não deixa ruir. Tal como ela, Recife. Cidade de resistência. Mas também brega em essência. Ressalto: em essência! Não é mera alegoria, pois somos Senzala com roupa de Casa Grande, justamente quando tentamos ser Casa Grande com roupa de Senzala. Assim como Clara, que “sofre” sobreguardada de imóveis, família, amigos, bela vista, sexo casual…

Tento chegar à resposta da heroína de quem. Clara é heroína de um público que faz da nostalgia uma saudade. Pois, se Clara fosse uma heroína ética, uma heroína sem rótulo, uma heroína do tempo, e não de um determinado tempo, ruiria junto com o edifício Aquarius e seus cupins. Clara, se fosse revolucionária, seria o câncer, tal qual Freud quis ser ao chegar ao EUA, ainda que pretensioso, para falar da sua teoria dizendo estar trazendo a peste. Deixaria o cupim tomar seu corpo e KMF construiria um remake da cena da mãe empalhada em Psicose. KMF preferiu as palmas de um tempo, de um público, com o fim de uma redenção pasteurizada. Clara diz ao grande Outro, a voz da mediação psíquica, como coloca a psicanálise lacaniana: sou sua histérica fundamental. Ao invés de desprezá-lo, briga neuroticamente, enquanto o grande Outro, a voz da sua moralidade mais fundamental, ainda que sórdida e violenta, ri.

Clara deu seu showzinho. E por isso se tornou heroína de um público atento a pequenos shows que nada tocam além de tocar alguma coisa. Entre um pai falido e um filho mimado, Clara foi correr atrás da barra da calça de um suporte, em vez de assumir a realidade teoricamente punk que parecia sentir na pele. Fingiu para os seus que se emanciparia com aquela cena final. Mais que isso, narcisista, fingiu a si mesma. Lógico, já que podia fingir.

No fundo no fundo, quem é a verdadeira heroína (agora, como obviamente deveria estar claro que esse duplo sentido da heroína chegaria) é KMF fazendo a cabeça da galerinha cabeça feita. Só que até essa viagem é fake! Se foi isso mesmo que KMF quis ser, assim, acho que merece o Oscar, pois debochou do seu próprio filme e dos que nele se identificaram. O Oscar de melhor atriz à minha heroína: KMF!, que definitivamente enganou todo mundo!

O que me deixa encucado, se minha hipótese torta está certa, é se KMF sorri malandramente disso tudo ou se vive a alegria neurótica de Clara.

Fauasi

Deixe um comentário